17 de julho de 2007

BURACO DE FECHADURA

O Segisfredo morreu.
Coitado! Quem não conheceu o Segisfredo, na cidade! Pessoa de fino trato estava ali. Tinha alguns defeitos, mas quem não os tem?
Difícil aceitar morte repentina. Foi o que aconteceu com Segisfredo, abrindo uma lacuna impossível de ser preenchida. Não é assim que dizem quando o inesperado acontece com uma pessoa querida?
Fui ao velório. Assim que cheguei, uma roda de senhoras vestidas de preto cercavam o esquife e recitavam o terço, de modo que se alguém quisesse espiar o defunto ficava com a visão comprometida, mesmo que forçasse um olhar por cima dos ombros de qualquer uma das pessoas.
Terminada a oração, um por um chegava até a cabeceira de Segisfredo, passava-lhe a mão na testa e saía cabisbaixo. Alguns até faziam o gesto religioso e característico do sinal da cruz.
Não que eu achasse graça, porque o momento não era de humor, mas cheguei ao lado e olhei bem no rosto do morto. Segisfredo parecia rir, com aquela mesma cara de malandro que demonstrava em vida. Um bigode fino e comprido, com as pontas viradas para cima, o cabelo engomado e puxado para trás. As mãos peludas cruzadas ao peito. A impressão que se tinha era de um pobre coitado aceitando resignadamente o que lhe tinha sido reservado, sem contemplação. A mesma camisa vermelha, que não tirava do corpo. Dizia que dava sorte com mulheres. Um fetiche.
Imaginem um falecido de óculos escuros.
Pensem bem, olhar para um cara assim, a caminho da eternidade, e vejam se não é para rir.
Enquanto eu fazia essa reflexão, os presentes acomodavam-se em cadeiras encostadas às paredes da sala. E conversavam animadamente. Em velório têm, também, os momentos de distração. Uns falam de perdas irreparáveis, de acontecimentos funestos, de acidentes fatais ou de negócios, mas outros contam piadas, desde aquelas próprias de salão até as mais cabeludas. É preciso preencher o tempo com muitos assuntos, para atravessar a madrugada.
Os amigos de Segisfredo contavam casos acontecidos em rodas de prosa e chegavam a rir disfarçadamente, para não chamar a atenção de quem estava por perto. Mas a figura do morto era sempre lembrada, como centro das histórias mais pitorescas e picantes.
Inconsoláveis, namoradas chegavam, resmungavam alguma coisa ao ouvido de Segisfredo e depositavam-lhe tantas rosas nas mãos, que, ao final do velório, não tinha mais como segurá-las e caíam no chão. De quando em quando, uma zoeira chamava a atenção dos presentes. Eram as carpideiras que choravam copiosamente.
Segisfredo permanecia cercado por quatro velas, que tremeluziam como um triste fio de luz em final de noite.
O vozerio só foi interrompido pela passagem rápida de um gato preto, que eriçou os pelos e correu olhos de desconfiança para todos, causando um mal estar e provocando desmaio de duas senhoras idosas, que retocavam a pintura do rosto.
A chegada de um padre, para as orações de corpo presente, estabeleceu um silêncio profundo e todos o acompanharam até a beira da urna em que jazia Segisfredo, já frio e duro como uma pedra, como bem observou uma madame de última hora, ao tocá-lo e se benzer.
A reza do sacerdote e as palavras proferidas comoveram tanto os presentes, merecendo ao final estrondosa e prolongada salva de palmas, chamando a atenção dos moradores de um prédio vizinho, que saíram às janelas cheios de curiosidade. Bem que Segisfredo se fez merecedor daquela comovedora oração
Era o fim de Segisfredo no velório.
Enquanto o esquife era carregado para o carro fúnebre, enfeitado de coroas de despedidas, dois velhos amigos comentavam com tristeza o acontecimento e afirmavam convictos de que Segisfredo iniciava a caminhada rumo ao céu, o seu verdadeiro lugar.
Devidamente acomodado no monumento erigido em sua memória, coberto de flores, chegavam ao fim os dias felizes de Segisfredo na terra, deixando a vida para ocupar um lugar de honra junto aos anjos, como esperava merecer.
Na leveza da viagem, levado nas asas de figuras angélicas, guiadas pela luz das estrelas, Segisfredo observou ao lado um cortejo de seres fantásticos, que ensaiavam uma dança macabra, brandindo armas ameaçadoras. Vieram-lhe à lembrança recomendações maternas, durante seu estágio no mundo dos vivos, para que caminhasse com um comportamento merecedor das bênçãos divinas. Não teve ouvidos para ouvir conselhos. Achava que não tinha culpa. Subiu tranqüilo, embora contra a vontade, porque se sentia bem com os amigos da terra.
Segisfredo despiu-se de todos os maus pensamentos, dos pecados, pois ficar de coração limpo e aliviado dos erros cometidos era o seu maior desejo, para entrar no Paraíso. Quando bateu na porta do céu era tarde da noite. Sabia disso, mas não teve nenhuma possibilidade de chegar antes, porque seus funerais foram no ocaso do dia e o trânsito estava congestionado.
São Pedro, ao ouvir as batidas, acordou assustado. Levantou-se, esfregando os olhos, desconfiado de que algo poderia estar errado. Era fora de hora e hora de descanso. Também, não havia sido feito pedido de reserva de lugar durante o dia. Deu uns passos titubeantes e sonolentos, levando à mão um cajado, para maior segurança. Não acendeu nenhuma luz e manteve-se em silêncio. Espiou pelo buraco da fechadura e reconheceu Segisfredo.
"Justo esse cara chega fora de hora", teria pensado São Pedro, rodeado de anjos, que, curiosos, punham-se por sobre seus ombros, para saber quem estava chegando.
Em princípio, não queria acreditar no que estava vendo e muito menos abrir a porta celeste.
Para se certificar de que não havia nada de errado ou ter a certeza de que havia, São Pedro foi consultar o livro de registro das almas chamadas para aquele dia. Depois ordenou que todos os anjos voltassem aos seus aposentos. Fossem dormir.
Segisfredo bateu mais de uma vez na porta do céu e estava ficando impaciente, porque tinha pressa em entregar a São Pedro uma carta que o padre lhe pôs às mãos, na hora da encomendação do corpo. Gesto testemunhado por familiares, amigos e curiosos. Acreditava que a carta aconselhava o perdão dos céus. Por isso, voou para as alturas todo feliz, na esperança de estar sendo bem recomendado, embora sua folha de serviços prestados na terra registrasse alguns pecadilhos. Coisa sem importância, pensava. Não custava nada insistir, para ser recebido por São Pedro e contar-lhe sua história.
E contou, caprichando nos detalhes.
Sem que ninguém percebesse, os anjos estavam de volta. Alegres, disfarçadamente colhendo flores no jardim, como passatempo, mas de ouvidos bem ligados no que Segisfredo contava. E riam, com as mãos fechando a boca, para não despertar atenção e receber um puxão de orelhas do Chefe.
São Pedro ouviu pacientemente a narração dos fatos notáveis que Segisfredo dizia ter realizado na terra, fazendo-o de modo bastante sério, ajoelhado e de cabeça baixa, como acontece com os pecadores, no instante da contrição.
Acostumado a comportamentos de heróis com que todos se apresentam nas confissões, São Pedro tirou sua mão direita de sobre a cabeça de Segisfredo e olhou bem fundo nos seus olhos, em forma de admoestação.
Encarando Segisfredo de frente, São Pedro lembrou-se de como os mortais mentem na hora de prestar contas, porque a relação que o padre lhe havia encaminhado sobre o seu mais novo visitante era bem extensa e cheia de atos pecaminosos.
Segisfredo entrou em pânico, percebendo o ceticismo de seu confessor. Havia mentido demais.
São Pedro ficou em silêncio por alguns instantes, pensando no que fazer. Ordenou que os anjos se retirassem.
Com a doçura de Santo, São Pedro saiu andando, com o braço direito sobre os ombros de Segisfredo, dando-lhe sábios conselhos.
As palavras encorajadoras despertaram enorme entusiasmo em Segisfredo, que se sentiu aliviado e esperançoso de um bom lugar para o descanso eterno ou voltar ao convívio dos amigos e contar-lhes a misteriosa viagem ao céu. E voltou.
O guarda-costas de plantão acompanhou-o até a porta de saída e o despediu. Com um pontapé no traseiro.

Nenhum comentário: