31 de julho de 2007

O MENINO DA ESTÁTUA


Aquela estátua de mármore não era uma representação figurativa erguida na rua deserta. Provavelmente, homenageando alguma alma feminina. O menino, cansado de fugir, aconchegou-se em seu colo. Ao vento, que a tornava mais fria, embalava o sono. Faltavam-lhes as roupas. Pouco importava. A imaginária canção de ninar os alimentava no carinho do amor.
Ele olhava aquele rosto angelical e retribuía com um sorriso de inocente. Por que estavam a sós? Ela bem que sabia. Mas preferia transmitir com o olhar de mãe a certeza de sua missão. O abandono era circunstancial. Nem os cabelos os separavam. Compridos e loiros, dela. Encaracolados, curtos e escuros, dele. Sentiam-se seguros como os fortes.
A sombra amiga os reconfortava e o perfume das flores os envolvia nos laços eternos do profundo amor a que se entregavam. A troca recíproca de sentimentos os afastava da solidão. Eram solidários e cúmplices de um momento de desventura.
O tempo, no caminhar implacável, foi abreviando-lhes a vida. O sol e as chuvas desbotando o olhar e danificando os corações. A troca de sorrisos foi perdendo o significado mais forte e minando-lhes as forças. O ninar não lhes dava mais descanso.
Na última vez que se olharam, a tristeza embruteceu os semblantes. Os olhos fechados não eram de quem dormia. Ela só parou de embalar quando sentiu frio aquele corpo franzino.
O menino parecia sorrir.

GUIA TURÍSTICO



Os passeios, de qualquer tipo, proporcionam uma gama enorme de distrações, não bastasse a satisfação íntima do contato com o novo. Há sempre uma surpresa, o belo, a natureza, o desconhecido, a sensação de alegria e felicidade, a revelação, a identidade de valores. Quando se trata de excursão, que reúne pessoas das mais variadas formações profissionais, torna-se mais interessante, por uma série de razões, sentida nos dias de convivência. Os passeadores sabem muito bem disso.
Agora, tem o seguinte: se os passeios são monitorados por guias pouco comunicativos e que desempenham suas atividades por mera obrigação, tudo pode se tornar frustrante. Nada pior do que um roteiro em que a orientação dos locais a serem visitados é feita apenas por um palavreado burocrático, de puro efeito técnico, em que os turistas simplesmente ouvem, não perguntam, não têm liberdade de um contato mais ligado à troca de impressões, o que, na verdade, é o que mais desejam.
Faço aqui um pouco de digressão, para um paralelo entre valores diplomados e aqueles que simplesmente se revelam possuidores de uma capacidade inata, para desenvolver suas atividades. Há pessoas que nascem com o dom para um determinado ofício e que, por razões diversas, não dispõem de recursos para habilitação profissional, mas procuram se inteirar do novo e enriquecer conhecimentos práticos.
Volto aos passeios.
Um guia turístico desembaraçado, cheio de prosa, que conta piadas, fala mentiras das grossas, põe os turistas à vontade, deixa-os descontraídos, torna o ambiente alegre e provoca uma sensação de felicidade em todos os que o rodeiam. Às vezes, os assuntos mais simples ganham enorme importância, pelo enfoque que lhes é dado ou pela maneira como são apresentados.
Claro que os lugares pitorescos são os mais visados, como praças, com os vultos históricos perpetuados em estátuas, museus, sobretudo de figuras que fizeram a história do país, igrejas, universidades, zoológicos, praias etc e tal. De passagem, mansões de personalidades ou empresários que sustentam a liderança política e econômica da região, ou ainda que se destacam em artes, como música, teatro, pintura, literatura, escultura, cinema e outros movimentos culturais.
Mas de um roteiro tão interessante quanto lógico os turistas não escapam. Refiro-me às paradas em locais onde o comércio artesanal se transforma em pontos obrigatórios de visitas. Os guias alardeiam a necessidade de um descanso ou lanche rápidos e enfatizam a qualidade dos produtos que ali podem ser encontrados: os chamados suvenires, representados por peças de madeira, porcelana, barro, colares, pulseiras, brincos de pedras ou sementes, rendados, além de doces e licores de todos os tipos e gostos, lambe-lambe para uma foto e uma infinidade de outras lembranças. E até repentistas para aquela saudação tão formal, na repetição de versos e, depois, o passar do chapéu para algumas moedas. Afinal, eles vivem disso. E tem alguns guias que são espertos, pois a uma distância desses locais transmitem um sinal característico, principalmente buzina, de aproximação dos excursionistas, como dizendo "estamos chegando". Não é preciso dizer porquê.
Mas, em passeios, é isso mesmo. Tudo é festa!

IMAGEM DO TEMPO

O ambiente não é alegre. Observo as pessoas que conversam baixinho. Parece que não querem incomodar quem é o centro daquela reunião inesperada.
Esse é um momento para reflexão. Voltar no tempo. Trazer à memória dias felizes. A saudade não é pra isso?
Mas, por que será que a vida segue um caminho cheio de obstáculos, às vezes tortuosos, por onde as pessoas tropeçam no próprio destino?
De repente, tudo se acaba e aquela reunião é esquecida. Pra mim, não. Volto no tempo. Relembro aquele momento triste. Uma imagem aparece à minha frente. Tento manter um diálogo. Meu pai não responde.

MESA DE BAR


O rapaz estava sentado à mesa do bar. Um copo vazio à sua frente. Solitário, triste, pensativo. De longe, alguém o observava. Algo de errado poderia estar acontecendo com o moço. Conhecido e sempre alegre em roda de amigos. Pelos cantos, cochichavam. Uma desilusão? Um amor incompreendido? Uma saudade?
Passava os dedos pelas bordas do copo. Ouviu dizer que esse procedimento provocava sons e uma música poderia afogar suas mágoas.
A todo instante, consultava o relógio. Levava-o ao ouvido ou sacudia-o, na incerteza de estar funcionando ou não.
A curiosidade levava os serviçais a repetir seu gesto, de maneira automática. Ao mesmo tempo aguçava-lhes a expectativa de que alguém pudesse chegar a qualquer momento. Alguém do relacionamento íntimo daquele jovem solitário. Talvez, para a passagem de uma noite romântica. Ou do desenlace de uma paixão incompreendida.
Um garçom foi até a sua mesa. Não, o rapaz não queria beber nada. As conversas próximas não lhe chamavam a atenção e tampouco mexia com seu pensamento, fixado bem longe da alegria daqueles que ficavam à sua volta.
Momentaneamente, dobrou a cabeça, com as mãos amparando-a junto aos ouvidos, como que quisesse ficar alheio ao burburinho ao lado. A tristeza era mais forte naquele momento, talvez de sentimento, ou de reflexão.
Aos poucos, aquele recanto bucólico, que provocava sonhos, que encantava casais de namorados, foi ficando abandonado.
Já nas altas horas da noite, o garçom bateu-lhe nos ombros. Ele se despediu sem nada dizer. O vazio do copo era pura imaginação para contar esta história.

NOITE ESCURA


À minha frente vejo três velas em chamas. Uma grande, uma média e uma pequena. Foram acesas porque lá fora a noite está escura. Não por razões da natureza, mas porque houve um blecaute na região. Isso sempre acontece e, não raras vezes, a volta da energia está pra mais de hora. Quando chove, trovões incomodam pelo medo que provocam, depois de relâmpagos assustadores, e o que acontece é que apagões são uma constante. Mas a noite está bonita. Até a lua manda lá do céu recados convidativos para namorados românticos. Por isso, é estranho o que está acontecendo.
Deixo esse problema da escuridão por conta de quem corre a responsabilidade de resolvê-lo. Que nem sempre é rápido.
Observo as três velas. Parece que está havendo uma competição, uma querendo fazer com que a chama seja mais bela que outra. E se lançam altas e brilhantes. Um leve vento que atravessa os vãos da janela provoca uma sessão de bailado e elas parecem dançar naquela ginga que envolve todo o salão.
Minha imaginação é aguçada na apreciação daqueles movimentos que as chamas transformam em festa. Penso em dar-lhes vida, provocá-las para me darem instantes de entretenimento, distração, enquanto aguardo a chegada da luz artificial.
Na medida que o tempo passa, as chamas vão corroendo seus corpos frágeis. Vão cedendo ao impacto que as esperanças desvanecem. Mas lutam e revivem instantes felizes, como se a luz que emanam restabelecesse a própria vida.
Mas, noto uma diferença brutal nas três. A grande e a média mostram-se com força maior e não querem perder o vigor que ainda as faz viver. Ficam alheias e ignoram a companheira do lado.
Volto meus olhos para a menor e percebo que a sua luta é insana, provavelmente vislumbrando um final próximo e triste. Penso um instante como é a vida. Enquanto jovem, vivendo a felicidade que a fantasia o alimenta, tudo são rosas, vermelha se revela o amor ou outra cor que renove a esperança para um futuro feliz. Nessa distração, esqueço um pouco a pequena vela se consumindo e vou até a janela para me socorrer dos raios da lua numa tentativa de dar-lhe forças para superar os desafios na luta destemida em que está entregue. Pareço-me tão fraco como ela e sem coragem para estimulá-la em seus momentos agonizantes. Na verdade, não sei o que fazer e me entrego às fraquezas humanas.
Que luta triste acompanho. As chamas esforçam-se para lhe dar esperanças. Mas ela parece a cada instante mais fraca. Num derradeiro esforço, junta-se a outras chamas provocadas por restos de velas no fundo do castiçal, como se fossem mãos em oração aos céus, num pedido de salvação. As labaredas se confundem em abraços de despedida. Aos poucos, apagam-se, num último suspiro.
As outras duas velas? Não deixaram história para contar.

17 de julho de 2007

BONECA DE PANO


As pernas longas e finas. Os braços desciam desengonçados até os joelhos. A cabeça chata e fofa, fazendo cair nos ombros duas compridas tranças de cabelos pretos, com uma fita branca nas pontas. Os olhos pareciam dois sóis, como as crianças pintam quando começam a desenhar.
Essa uma boneca de pano. O nome? Não tem nome. Se quiserem, podem chamá-la de Rosinha.
Perceberam que essa boneca não tem os pés nem as mãos? Estão amarrados com nó cego por pedaços de barbante bastante forte, para que o enchimento não saia e o corpo não perca a forma. Mas é tudo mole.
Essa era a boneca que Mariazinha passava o tempo a brincar na varanda da casa. Mariazinha tinha três anos e vivia só. Não tinha uma irmãzinha para conversar. Então, Mariazinha conversava muito com a Rosinha. A menina perguntava e respondia ao mesmo tempo. Um monólogo, porque Rosinha não sabia falar. Às vezes, Mariazinha fazia de conta que pegava um gatinho, fechava as mãos e mostrava para Rosinha. Depois, abria as mãos e dizia que o gato havia fugido. E ria!
Mariazinha ensinou Rosinha a andar. Erguia os dois braços da boneca, colocando o corpo dela entre suas pernas e cantava uma música de ninar, repetindo várias vezes. E andava pra cá e pra lá na varanda. Depois, se dizendo cansada, colocava a boneca numa caixa de papelão feito cama.
A menina Mariazinha cresceu. Foi para a escola e se esqueceu da boneca. Estudar e trabalhar passaram a ser a sua preocupação. Formou-se médica. Hoje, é a doutora Maria Augusta. Um dia, começou a se lembrar do passado. Quando brincava com a boneca de pano. Correu em busca da caixa de papelão, que havia guardado entre suas coisas de criança. A caixa estava vazia. Maria Augusta ficou muito triste e chorou.
Rosinha não sabia falar, mas aprendeu a andar com Mariazinha. Será que ela foi morar com outra Mariazinha?


CRÔNICA DA ROÇA

Viver na roça pode dar a falsa impressão de uma vida afastada do mundo, no enfrentamento de toda sorte de dificuldade que o homem pode sentir em relação à cidade, por mais próxima que seja. Quem mora nos centros urbanos não tem como avaliar com toda exatidão o que seja sentir o cheiro da terra molhada, o frescor da mata, o sol que nasce nas manhãs da primavera, a lua que inspira o cancioneiro popular.
A vida no campo é um suceder de momentos felizes, um gozar das delícias que a terra oferece, o poder respirar o ar puro, o nadar em águas cristalinas, o sentir o gosto das frutas dos pomares, o jogar futebol aos domingos, mesmo em terra batida, o andar a cavalo pelas campinas verdejantes, o tomar o leite com groselha ou capilé na hora da ordenha, o espiar da varanda do casarão a galinha-choca a aninhar sob suas asas a prole de quinze a vinte pintainhos, a alegria de conviver com gente simples, sem malquerença, aquela conversa agradável à boca da noite, o ouvir contar histórias dos mais velhos, o admirar a lua no espelho d’água, o apreciar o canto romântico de um sabiá no topo de uma árvore, o cantar do galo nas madrugadas, o repique da viola nas noites enluaradas, o despencar das estrelas no escuro das noites, enfim, é ter momentos de felicidade e paz.
O caminhar pelas estradas de terra, o sentir os pingos da chuva a bater suave no rosto marcado pelo tempo, o admirar o desabrochar de uma flor nascida à beira de um regato, o recolher os animais no curral e muito mais que provoca aquele sentimento de uma vida envolta de rara ventura.
No campo, a força das velas que uma lâmpada alumia na cidade pouca falta faz. Acostumado a lamparinas de querosene ou lampiões a gás, o homem torna as noites mais românticas, vence as dificuldades e contorna as facilidades naturais que o moderno proporciona. Não faltam as visitas ao vizinho, as conversas alegres de um passatempo agradável, nem as reuniões enriquecidas com café gostoso da hora e acompanhado de bolos feitos por mãos de fadas.
A demonstração de fé nas rezas em casas das colônias, as missas mensais e as festas anuais na capela do bairro, em homenagem ao padroeiro, com quermesses, prendas, doces e salgados são costumes que passam de geração em geração, que se tornam tradição no registrar dos tempos.
Ah, as noites de fins de semana! Os bailes abrilhantados com sanfona, violão e pandeiro, nos terreiros onde se secava o café e se malhava o feijão, improvisado de salão, com coberturas de encerrado e paredes de bambuzinhos. O jogo de truco, naquela troca de sinais imperceptíveis, nas trucadas falsas, na gozação de uma fuga do adversário iludido.
Até mesmo o trabalho da roça, duro e cansativo, oferece aquela saudável sensação de estar se enriquecendo pelo dever cumprido. O suor que escorre pelos rostos queimados pelo sol inclemente é sempre recompensado pelas chuvas copiosas e abençoadas que as nuvens espalhadas pelo céu despejam, quando as tenras mudas das plantações apontam na terra a oferecer o fruto generoso que alimenta e fortifica.
O falar do erre arrastado e acentuado é o comportamento típico de um povo livre na sua manifestação oral, sem a preocupação gramatical e tampouco a pretensão da palavra rebuscada do erudito, que empolga no seu discurso fácil. Pode ser até ingênuo, mas transmite a clareza de uma sinceridade própria de amigos íntimos, da amizade profunda, de uma convivência sadia.
Enfim, não há alegria maior que conhecer as belezas que o campo oferece, gozar de um tempo tranqüilo em sua ingenuidade, sentir o gosto de estar de bem com a vida. A felicidade está em qualquer lugar. É só procurá-la. Viver na roça é, também, ser feliz e sentir saudade. Sempre.

INVENTÁRIO

Há um patrimônio que a gente forma na vida que não se identifica como riqueza material. É a soma de bens que se enriquece no dia a dia, que se fortalece nos encontros freqüentes, mas que nem sempre se perpetuam nas condições em que se alimentam e se limitam.
Estou cogitando no entendimento que se possa ter dos bens sentimentais. Se a gente parar por alguns instantes para pensar um pouco, deixando de lado as intempéries que assoberbam a vida de cada um e se voltar no tempo, fácil é chegar ao inventário das coisas que são somadas diariamente. Não alimento a história que é escrita com lembranças representadas por jóias, móveis, adornos ou outro objeto qualquer que possa ser considerado relíquia ou ter algum valor particular. Refiro-me ao sentimento de simpatia, de estima mais íntima, enfim, de dedicação recíproca entre as pessoas.
Quantas amizades são feitas desde as brincadeiras que as crianças cultivam nos passatempos dos jogos de pião, bolinha de gude, pipas soltadas ao sabor dos ventos e tantas outras que marcam a vida da gente. Depois, na mocidade, nos divertimentos que mudam os interesses de cada um. E o tempo vai passando, muitas coisas esquecidas e algumas renovadas em encontros fortuitos, enquanto outras nascem para o rejuvenescimento da vida, na constituição de famílias e no círculo das amizades que se formam.
Nos tropeços com que as pedras interrompem os caminhos vividos, faz bem que alguns acontecimentos fiquem para trás, sejam esquecidos, porque não foram cimentados com a admiração que estreitam as amizades. Mas, a vida é tão cheia de desencontros que nem sempre carregam consigo os sentimentos que surgem de um momento para outro e que se perdem também na mesma constância, sem que se descubram motivos aparentes que os justifiquem. Talvez sejam amizades frágeis, passageiras, que não se consolidam na firmeza de sensibilidades mútuas. Nem encontros freqüentes parecem recuperar aqueles instantes cultivados. Sentimentos que se esmorecem pouco a pouco, como aqueles pingos tristes e solitários, que parecem lágrimas ao final das chuvas. E tudo vai passando como se nada tivesse acontecido.
Fico a pensar que são bens sentimentais que voam nas asas da saudade e se perdem nos espaços que os céus agasalham, como nuvens que caminham ao léu e se desvanecem nos impulsos das ventanias. E nada se pode fazer, porque as mãos que os querem agarrar não chegam nas alturas em que eles se põem ou se escondem nos horizontes inalcançáveis.
Quisera ser um poeta para registrar em versos esse inventário da vida, pois só a poesia pode traduzir os sentimentos que cada um traz no coração, coração que se torna frágil e se curva na passagem dos tempos.
Por acaso, você nunca sentiu isso?

BURACO DE FECHADURA

O Segisfredo morreu.
Coitado! Quem não conheceu o Segisfredo, na cidade! Pessoa de fino trato estava ali. Tinha alguns defeitos, mas quem não os tem?
Difícil aceitar morte repentina. Foi o que aconteceu com Segisfredo, abrindo uma lacuna impossível de ser preenchida. Não é assim que dizem quando o inesperado acontece com uma pessoa querida?
Fui ao velório. Assim que cheguei, uma roda de senhoras vestidas de preto cercavam o esquife e recitavam o terço, de modo que se alguém quisesse espiar o defunto ficava com a visão comprometida, mesmo que forçasse um olhar por cima dos ombros de qualquer uma das pessoas.
Terminada a oração, um por um chegava até a cabeceira de Segisfredo, passava-lhe a mão na testa e saía cabisbaixo. Alguns até faziam o gesto religioso e característico do sinal da cruz.
Não que eu achasse graça, porque o momento não era de humor, mas cheguei ao lado e olhei bem no rosto do morto. Segisfredo parecia rir, com aquela mesma cara de malandro que demonstrava em vida. Um bigode fino e comprido, com as pontas viradas para cima, o cabelo engomado e puxado para trás. As mãos peludas cruzadas ao peito. A impressão que se tinha era de um pobre coitado aceitando resignadamente o que lhe tinha sido reservado, sem contemplação. A mesma camisa vermelha, que não tirava do corpo. Dizia que dava sorte com mulheres. Um fetiche.
Imaginem um falecido de óculos escuros.
Pensem bem, olhar para um cara assim, a caminho da eternidade, e vejam se não é para rir.
Enquanto eu fazia essa reflexão, os presentes acomodavam-se em cadeiras encostadas às paredes da sala. E conversavam animadamente. Em velório têm, também, os momentos de distração. Uns falam de perdas irreparáveis, de acontecimentos funestos, de acidentes fatais ou de negócios, mas outros contam piadas, desde aquelas próprias de salão até as mais cabeludas. É preciso preencher o tempo com muitos assuntos, para atravessar a madrugada.
Os amigos de Segisfredo contavam casos acontecidos em rodas de prosa e chegavam a rir disfarçadamente, para não chamar a atenção de quem estava por perto. Mas a figura do morto era sempre lembrada, como centro das histórias mais pitorescas e picantes.
Inconsoláveis, namoradas chegavam, resmungavam alguma coisa ao ouvido de Segisfredo e depositavam-lhe tantas rosas nas mãos, que, ao final do velório, não tinha mais como segurá-las e caíam no chão. De quando em quando, uma zoeira chamava a atenção dos presentes. Eram as carpideiras que choravam copiosamente.
Segisfredo permanecia cercado por quatro velas, que tremeluziam como um triste fio de luz em final de noite.
O vozerio só foi interrompido pela passagem rápida de um gato preto, que eriçou os pelos e correu olhos de desconfiança para todos, causando um mal estar e provocando desmaio de duas senhoras idosas, que retocavam a pintura do rosto.
A chegada de um padre, para as orações de corpo presente, estabeleceu um silêncio profundo e todos o acompanharam até a beira da urna em que jazia Segisfredo, já frio e duro como uma pedra, como bem observou uma madame de última hora, ao tocá-lo e se benzer.
A reza do sacerdote e as palavras proferidas comoveram tanto os presentes, merecendo ao final estrondosa e prolongada salva de palmas, chamando a atenção dos moradores de um prédio vizinho, que saíram às janelas cheios de curiosidade. Bem que Segisfredo se fez merecedor daquela comovedora oração
Era o fim de Segisfredo no velório.
Enquanto o esquife era carregado para o carro fúnebre, enfeitado de coroas de despedidas, dois velhos amigos comentavam com tristeza o acontecimento e afirmavam convictos de que Segisfredo iniciava a caminhada rumo ao céu, o seu verdadeiro lugar.
Devidamente acomodado no monumento erigido em sua memória, coberto de flores, chegavam ao fim os dias felizes de Segisfredo na terra, deixando a vida para ocupar um lugar de honra junto aos anjos, como esperava merecer.
Na leveza da viagem, levado nas asas de figuras angélicas, guiadas pela luz das estrelas, Segisfredo observou ao lado um cortejo de seres fantásticos, que ensaiavam uma dança macabra, brandindo armas ameaçadoras. Vieram-lhe à lembrança recomendações maternas, durante seu estágio no mundo dos vivos, para que caminhasse com um comportamento merecedor das bênçãos divinas. Não teve ouvidos para ouvir conselhos. Achava que não tinha culpa. Subiu tranqüilo, embora contra a vontade, porque se sentia bem com os amigos da terra.
Segisfredo despiu-se de todos os maus pensamentos, dos pecados, pois ficar de coração limpo e aliviado dos erros cometidos era o seu maior desejo, para entrar no Paraíso. Quando bateu na porta do céu era tarde da noite. Sabia disso, mas não teve nenhuma possibilidade de chegar antes, porque seus funerais foram no ocaso do dia e o trânsito estava congestionado.
São Pedro, ao ouvir as batidas, acordou assustado. Levantou-se, esfregando os olhos, desconfiado de que algo poderia estar errado. Era fora de hora e hora de descanso. Também, não havia sido feito pedido de reserva de lugar durante o dia. Deu uns passos titubeantes e sonolentos, levando à mão um cajado, para maior segurança. Não acendeu nenhuma luz e manteve-se em silêncio. Espiou pelo buraco da fechadura e reconheceu Segisfredo.
"Justo esse cara chega fora de hora", teria pensado São Pedro, rodeado de anjos, que, curiosos, punham-se por sobre seus ombros, para saber quem estava chegando.
Em princípio, não queria acreditar no que estava vendo e muito menos abrir a porta celeste.
Para se certificar de que não havia nada de errado ou ter a certeza de que havia, São Pedro foi consultar o livro de registro das almas chamadas para aquele dia. Depois ordenou que todos os anjos voltassem aos seus aposentos. Fossem dormir.
Segisfredo bateu mais de uma vez na porta do céu e estava ficando impaciente, porque tinha pressa em entregar a São Pedro uma carta que o padre lhe pôs às mãos, na hora da encomendação do corpo. Gesto testemunhado por familiares, amigos e curiosos. Acreditava que a carta aconselhava o perdão dos céus. Por isso, voou para as alturas todo feliz, na esperança de estar sendo bem recomendado, embora sua folha de serviços prestados na terra registrasse alguns pecadilhos. Coisa sem importância, pensava. Não custava nada insistir, para ser recebido por São Pedro e contar-lhe sua história.
E contou, caprichando nos detalhes.
Sem que ninguém percebesse, os anjos estavam de volta. Alegres, disfarçadamente colhendo flores no jardim, como passatempo, mas de ouvidos bem ligados no que Segisfredo contava. E riam, com as mãos fechando a boca, para não despertar atenção e receber um puxão de orelhas do Chefe.
São Pedro ouviu pacientemente a narração dos fatos notáveis que Segisfredo dizia ter realizado na terra, fazendo-o de modo bastante sério, ajoelhado e de cabeça baixa, como acontece com os pecadores, no instante da contrição.
Acostumado a comportamentos de heróis com que todos se apresentam nas confissões, São Pedro tirou sua mão direita de sobre a cabeça de Segisfredo e olhou bem fundo nos seus olhos, em forma de admoestação.
Encarando Segisfredo de frente, São Pedro lembrou-se de como os mortais mentem na hora de prestar contas, porque a relação que o padre lhe havia encaminhado sobre o seu mais novo visitante era bem extensa e cheia de atos pecaminosos.
Segisfredo entrou em pânico, percebendo o ceticismo de seu confessor. Havia mentido demais.
São Pedro ficou em silêncio por alguns instantes, pensando no que fazer. Ordenou que os anjos se retirassem.
Com a doçura de Santo, São Pedro saiu andando, com o braço direito sobre os ombros de Segisfredo, dando-lhe sábios conselhos.
As palavras encorajadoras despertaram enorme entusiasmo em Segisfredo, que se sentiu aliviado e esperançoso de um bom lugar para o descanso eterno ou voltar ao convívio dos amigos e contar-lhes a misteriosa viagem ao céu. E voltou.
O guarda-costas de plantão acompanhou-o até a porta de saída e o despediu. Com um pontapé no traseiro.

O REMEXER DAS CINZAS

As histórias contadas pelas avós ficam marcadas de maneira tão profunda nas crianças, que são guardadas na memória e que, um dia ou outro, em futuro não tão distante, voltam e são relembradas com muita saudade.
Em momentos sonhadores, as fadas reaparecem com toda sua bondade, trazendo alegria e felicidade. Nas noites de pesadelo, as bruxas retornam com toda maldade, provocando arrepios e medo, acompanhando as crianças pelos corredores escuros da Casa da Fazenda.
Nas reminiscências, essas lembranças estimulam reflexões. Os pensamentos buscam explicações para aquelas histórias, que tanto distraíam como provocavam emoções nas crianças, reações desencontradas, faces transformadas pelos horrores ouvidos. Nessas noites, sonhos podem se transformar em pesadelos.
Fatos do passado me trazem esses personagens como num sonho. Minha avó está sentada num banco de madeira, no meio de um círculo formado por netos e amigos, contando histórias, ao crepitar de galhos de pinheiro, que ardem na boca do fogão. Para mim, são histórias que ressurgem das cinzas. Mas é tudo tão estranho. Não reconheço quem as está vivendo. Mas como são bonitas as histórias contadas pela vovó...

OLHARES

Há dias na vida das pessoas em que seus olhos manifestam uma alegria contagiante e transmitem felicidade aos que delas se acercam. São dias em que tudo se transforma em momentos especiais. São sorrisos distribuídos em forma de cumprimentos e abraços que traduzem uma amizade marcada de emoções vividas.
Nessas ocasiões é que os olhos são o espelho da alma e transmitem sensações de um coração feliz.
Como seria bom se os olhares entre as pessoas proporcionassem todos os dias um encontro de alegria, felicidade e paz!

UM RAIO DE LUZ

Logo pela manhã, no despertar do sol, sentiu um raio de luz invadir sua imaginação. Em princípio, ficou pensando que fossem exatamente os raios do sol que lhe provocaram uma sensação de euforia e que tivessem se transformado em um foco de luz a iluminar seus sentimentos de inspiração.
Ficou segurando aquele quadrado da janela e espiando pelos seus vãos a beleza daquela luz que se infiltrava pelos seus aposentos.
De repente, tudo se apagou. Os raios do sol, como se despedindo, fugiram tão rápido como uma rajada de vento forte.
Sentou-se num tosco banco ao seu lado e imaginou: "de que me adianta esse raio de luz no silêncio desta cela escura!

UM VASO DE ROSAS




A escuridão ocultava sua passagem em frente ao jardim. Pensava ser uma simples penumbra sem ser percebida, perdida nas paredes, que o acompanhava em seus passos lentos. Casacão escuro, chapéu puxado que encobria os olhos, andar tolhido pelo peso que as pernas carregavam, fingia-se na miserabilidade para que ninguém levantasse suspeita no seu modo de viver. Desejava ser um ator de poucos momentos, como se o próprio tempo tivesse apagado o vigor de sua juventude. Lembrar o passado poderia trazer-lhe gratas recordações, mas não valia a pena revivê-lo, pois a saudade o martirizaria de tristeza. Mágoas provocariam lágrimas em seu rosto marcado de estrias profundas.
Parou em frente à casa, cujas janelas guardavam os mesmos contornos de velhos tempos, quando se abriam nas manhãs ensolaradas de esperanças de um novo dia As escadarias pareciam convidá-lo a subir até a porta de entrada e dar leves toques, como nos entardeceres da primavera. Ficou indeciso por instantes. Não ousou.
Por entre as frestas de um portão ao lado colhia sorrateiramente uma rosa, no frescor de seu desabrochar. Fazia parte diária de sua vida noturna. Na janela depositava a flor todas as noites, com uma mensagem cheia de carinho.
Certa madrugada e para sua surpresa, uma voz o convidou a entrar na casa. Sobre a mesa, um vaso com todas as rosas colhidas ao longo de muitas noites, com uma mensagem de agradecimento, escrita em linhas tortuosas como marcas deixadas pelos tempos, mas cheias de ternura. Uma cadeira vazia, um espelho estilhaçado, uma foto desbotada na parede, o dia despertando.
O sol chegando alto, penetrando forte na casa vazia. As rosas, secas.




OLHOS PARA AS FLORES




Estava eu a andar despreocupado por uma rua movimentada, quando pisei forte sobre um tapete macio de flores, já sem vida. Flores que caíam num balanço de bailado, assopradas por um vento suave, que parecia acometido de um sentimento triste, naquele ato involuntário que o destino lhe reservava.
As flores que enfeitam os jardins são alegres como uma criança, que se diverte com um brinquedo qualquer. É só notar como se sentem felizes ao ouvir um elogio à sua beleza e entendem as palavras que saltam dos olhares de quem as corteja.
Fiquei tempo a reparar as flores que o pé de ipê estendia naquele tapete cor-de-rosa. Absorto com o chuvisco de pétalas aveludadas a me acariciar o corpo. Nem havia reparado no senhor ao lado, óculos pretos, bengala, quieto, imóvel. Arrisquei uma conversa. Queria falar de flores, quando ele se virou, tirou os óculos e me perguntou: que flor exala esse perfume tão doce?
Olhei fundo nos seus olhos, dei-lhe os braços e o levei para o outro lado da rua.




OS VÃOS DA VIDA

Nas manhãs de sol, saio a perambular pelas ruas da cidade, à procura de amigos, para bate-papos e preencher o vazio ocioso que a vida reserva às pessoas, após tantos anos na lida do dia-a-dia.
Nem sempre esse encontro acontece com a vontade que tenho e com a satisfação que quero. É que o tempo é um padrasto incompreensível. Leva os amigos para bem longe, que ficam no esquecimento ou na saudade.
Procuro nos jardins, nas esquinas, em cada pessoa à minha frente, na calçada do outro lado da rua, nos esbarrões acidentais, na voz que ouço, um rosto conhecido.
Sei que não é fácil.
Os invernos da vida entristecem olhares e sulcam as faces. Mas procuro alguém. Olho pra cá e pra lá. Canso-me. Tudo em vão. Os amigos sempre vão.

14 de julho de 2007

RIO SECO



Tantos anos se passaram desde a última vez que estive às margens do caudaloso rio. Parecia uma despedida. Momentos antes, uma solenidade toda especial encerrava uma longa caminhada de estudos e projetava cada jovem para as expectativas de um futuro feliz.
Nesta volta de recordações e saudade, pude me aventurar além da margem do rio, para me postar sobre uma pedra perdida no meio da cachoeira, outrora murmurante e ameaçadora. Fiquei a pensar, trazendo à memória momentos de muita alegria e felicidade. O rumorejar das águas, batendo forte nas pedras e rompendo os obstáculos à frente, não era o mesmo. A violência da correnteza se escondia no tempo. Vi fios de água, vagarosos e lamuriantes, procurando caminhos por entre as pedras, que se expunham como órgãos doentes da natureza.
Absorto e parecendo sonhar, me chamou a atenção uma voz macia e doce que me despertou para a realidade à minha volta. Estava sozinho naquele abandonado espaço vazio e onde meus olhos alcançassem nada me detinha, como na alegre paisagem que ficou, mas vislumbrava uma profunda e infinita tristeza.
Seria um fantasma a provocar um sentimento no fundo de minha alma?
Vi fios grossos escuros escorrendo pelos vãos das pedras, exalando odor insuportável. Observei as margens e o leito mutilados.
Custou-me a acreditar, mas esse não é rio do meu passado.

6 de julho de 2007

MARCAS DO TEMPO

Saudade é mesmo lembrança nostálgica que maltrata muito por nos trazer à memória reminiscência do passado, ligada a pessoas ou objetos.
Quem não guarda para sempre em suas lembranças impressões da infância e da adolescência, que freqüentemente são revividas, provocando renovadas emoções!
Dia qualquer encontramos um amigo dos belos tempos de menino. Acontecimento feliz, mas inesperado, pois a vida obriga a todos a aventuras e desventuras, a mudanças de cidade e, às vezes, de país, que nos colocam longe das grandes amizades. Um dia, quando menos esperamos, ei-nos frente a frente, numa rua qualquer.
O impacto inicial nos é causado pela transformação física que um observa no outro. Guardamos a fisionomia gravada nos tempos da adolescência. Custa-nos crer toda aquela diferença que os corpos apresentam. Os cabelos, se não ausentes, estão grisalhos. E dizemos que é charme. A elegância proporcionada por um físico privilegiado foi substituída pela protuberância do abdome. Os rostos registram as marcas do tempo.
A reação inicial é de riso. E rimos disfarçadamente, fazendo de conta que não estamos acreditando na realidade diante dos olhos. A solução é nos enganarmos mutuamente. É o que fazemos. Nunca desejamos ter como verdadeiro o que o tempo nos mostra.
O que nos salva nessas ocasiões é o espírito humorístico ou então relembrar o passado. Recordamos os muros pulados do pomar vizinho, em busca de uma fruta madura e deliciosa. O caçar de uma inocente rolinha com um bodoque impiedoso. O nadar num riachinho de águas inofensivas, mas que nos causavam pavor. O andar a cavalo nas pradarias verdejantes. O brincar na chuva fina dos janeiros sem fim. O jogar bola de gude e as disputas de pião. As mentiras aos mais velhos, para evitar os castigos pelas peraltices cândidas.
Uma passagem pela casa grande da fazenda nos provoca uma reação dolorosa e deixa os olhos rasos d’água. As fotos dos avós, em poses elegantes, seguras por cordões compridos sustentados nas paredes. As samambaias e as avencas enfeitando com delicadas folhas os alpendres. As rosas, os lírios, os cravos perfumando os jardins. O relógio marcando o tempo, de modo implacável, com batidas dolentes de um badalo de bronze.
A saudade nos deixa marcas indeléveis nesses encontros inesquecíveis. Mas nos faz felizes.

A DEUSA DOS MARES


Sem se dar conta de que a noite estava chegando, ela continuava com o seu olhar ao longe, esperando as despedidas dos últimos raios do sol, que teimavam em se infiltrar pelas sombras das nuvens brancas que enfeitavam o céu. E nem percebeu que a lua abria espaço para o seu passeio noturno.
E por quê ela estava ali a contemplar aquelas imagens perdidas na imensidão do céu?
Saiu à tarde para um passeio. Sem destino e sem pressa para evitar o inesperado. Queria só recobrar o tempo que ficou atrás. Apenas estar ao capricho do pensamento. Bem distante da realidade que estava vivendo. Empunhava uma varinha mágica que batia despreocupada à sombra andando ao seu lado, guiando os seus passos, marcados por sonhos e fantasias.
Só ela a carregar aquela angústia, sem ter alguém para desabafar o que sentia. Muitos passavam com olhares curiosos, mas nem os esbarrões descuidados a desviavam da meditação profunda em que se encontrava.
O imprevisto a levou a pisar mansamente a areia branca da praia deserta. O mar penetrava barulhento pelos seus ouvidos, no rumor das ondas quebradas nos penhascos.
Eram poucas as gaivotas que lhe faziam companhia, no silêncio do ocaso da tarde. Uma penumbra entre o sol que se despedia e a lua que se anunciava.
A noite chegou, carregando consigo a tristeza que tornava a solidão mais forte, na imagem daqueles olhares perdidos no infinito escuro.
Uma sonolência estranha se abateu sobre aquela alma, esquecida no vazio da noite, tropeçando descuidada na imaginação, como uma sonâmbula seduzida nos caminhos da fantasia.
Um vento brando a despertou dos devaneios, para desfrutar de toda a graça da lua à sua frente, com a suavidade do seu clarão banhando-lhe o rosto inquieto e adoçando-lhe a amargura.
Foi assim que ela se sentiu estimulada para uma nova vida, esquecendo a tristeza de um abandono cruel. Só ela e a lua gozando de toda felicidade.
- Texto classificado em primeiro lugar no Concurso Primavera de Poesia e Prosa – 1997 -, promoção do Grupo Poetas do espaço Cultural de Santos, São Paulo.

4 de julho de 2007

O FIM DE UMA MANGUEIRA

A vida das pessoas segue um caminho por demais longo, cheio de curvas, subidas e descidas, pedras e buracos, até que chega ao fim. Para muitos, cercada de felicidade, e para outros nem tanto. Mas a vida é assim mesmo, não se pode desviar dos solavancos. Na verdade, o que importa é saber ultrapassar todos os obstáculos, seguir em frente e encará-la com entusiasmo, nunca perder as esperanças no amanhã.
Mas não são só os humanos que atravessam caminhos pedregosos da vida. Se olharmos bem para os animais, domésticos ou criados nas florestas, e as plantas, observaremos que tudo tem uma seqüência normal. Se aqueles nascem no processo de procriação, estas germinam através das sementes. Também seguem em frente e um dia chegam no fim da jornada.
Então eu quero escrever sobre uma mangueira, que através da janela de onde eu moro, acompanhei por aproximadamente 20 anos a sua trajetória aqui na terra.
Essa mangueira me levou, não poucas vezes, a minha infância, quando eu passava todos os anos uma temporada na fazenda de meu avô, em Tamandupá, aqui perto da cidade. Um casarão belíssimo era dos tempos dos barões do café, com muitos cômodos, salas enormes de visita e de refeições e até acomodação, que ouvi dizer, era reservada a escravos. Atrás da casa uma horta onde eram cultivados verdura, legumes, cheiro-verde, hortelã e cidreira, usados nas refeições diárias e ervas para chás utilizados no tratamento de doenças comuns, resolvidas com esses produtos caseiros.
Passando por essa horta chegava-se a um pomar, cuja área não era menor que as medidas de um quarteirão quadrado. Árvores frutíferas a perder de conta. Aliás, moradores, sitiantes e fazendeiros nunca deixavam de ter nos arredores da casa esse tipo de cultivo. Nesse pomar eu passava horas, ouvindo o cantarolar dos passarinhos e admirando a beleza dos frutos, muito diferentes dos encontrados atualmente em feiras e supermercados, acima de tudo saudáveis e muito doces. O gostoso era subir nos pés de frutas e apanhar aquelas que ficavam nas pontas dos galhos, difícil de pegá-las. Era uma aventura que ficou guardada na minha memória.Registrando essas passagens volto à mangueira que vejo da minha janela.
Com uma copa de folhas verdejantes, como acontece quando a planta é saudável, todos os anos ela se embelezava com flores branco-amarelas, para depois surgirem pequenos frutos que se desenvolviam até alcançar o ponto da colheita. Mas como uma mãe que protege os filhos em seu colo, a mangueira mostrava as mais cobiçadas mangas no alto, sempre difícil de serem apanhadas, até que um dia ventos fortes as separavam.
De uns tempos para cá observei que diariamente a mangueira estava definhando. As folhas começaram a perder o viço e, de um marrom escuro, caíam, mostrando os galhos em processo de secagem, como costelas à mostra. Agora, só falta a derrubada fatal, com um impiedoso machado ou uma cruel serra pondo fim a sua vida.
Confesso que isso me entristeceu bastante. Não sei se essa mangueira percorreu os caminhos tortuosos de sua existência ou se sua vida foi interrompida precocemente.